O sinal indicativo da crase sobrevive apesar de seus detratores; saber empregá-lo pode reforçar a mensagem e evitar dúvidas de sentido
Poucos assuntos geram tanta polêmica no domínio da gramática quanto a crase. Não foram poucos os que já se manifestaram contra ela. O deputado João Hermann Neto, falecido em 2010, chegou a apresentar um projeto de lei para extingui-la. Alegava que "o acento não faz falta", trata-se de um "sinal obsoleto que o povo já fez morrer". O humorista Millôr Fernandes parece ter opinião idêntica. Em entrevista a Língua Portuguesa, afirmou que "se todo mundo erra na crase é a regra da crase que está errada". O escritor Moacyr Scliar identificou um "medo existencial" a ela, como se visse um traço hamletiano nas dúvidas sobre o seu emprego. Crasear ou não crasear - eis a questão.
Reconhecendo que a crase parecia mesmo ter-se transformado num "grave problema ortográfico e existencial", o poeta Ferreira Gullar cunhou há décadas aforismos sobre o assunto. O mais popular deles é o de que "a crase não foi feita para humilhar ninguém". Gullar a defendia, criticando escritores, jornalistas e escrevinhadores que "tremiam diante de certos aa", mas suas palavras acabaram servindo de argumento aos que a detratavam. Entendeu-se que ele pretendia livrar as pessoas da dolorosa obrigação de crasear, e não aconselhá-las a estudar português. Uma das justificativas de Hermann para seu projeto foi a de que a crase "só serve para humilhar". Dava a entender que a extinção do "acento" (sic) pouparia os brasileiros do vexame de não saber usá-lo.
Fusão
O fato é que, entre humilhados e ofendidos, não se aboliu a crase. Se as pessoas hoje procuram o divã, é por outras razões. Tampouco a cruzada contra ela fez efeito; ao contrário: quando se tentou extingui-la, muitos mostraram que a falta do acento grave sobre o a em certos contextos complica mais do que simplifica. Representa ameaça à clareza e sugere desconhecimento de peculiaridades estruturais da língua.
O que é a crase, afinal? A primeira confusão que se faz é considerá-la um mero sinal gráfico. A crase não é acento, mas um fenômeno fonético; define-se como a fusão de vogais iguais. Eis o motivo pelo qual ninguém craseia um a; indica, por meio do acento grave, que nesse a existe uma duplicação de fonemas.
A crase pode ocorrer no início da palavra ou entre palavras. O primeiro caso se inclui no que se chama de metaplasmo, uma mudança no som e na morfologia pela qual passaram muitos vocábulos da nossa língua. Há crase, por exemplo, nas formas "pôr" (poor), "ser" (seer), "pé" (pee), que em sua evolução do latim para o português perderam consoantes e adquiriram grupamentos vocálicos que depois se fundiram.
A crase entre palavras pode dizer respeito só à pronúncia ou ser marcada na escrita. Um exemplo do primeiro caso: "Luciana é umaamigaatenta". Quando se pronuncia essa frase, o a de "uma" se junta ao a inicial de "amiga"; o mesmo ocorre entre o a dessa última palavra e o que inicia "atenta". Em versificação, esse tipo de crase constitui um caso de sinalefa, que é um meio de transformar duas sílabas em uma e manter a unidade métrica do poema. Exemplo de sinalefa está neste verso de Olavo Bilac: "Tinhas aalma de sonhos povoada"; o artigo a e o fonema inicial de "alma" se realizam numa mesma emissão de voz.
A crase marcada na escrita ocorre quando a preposição a se junta ao artigo definido feminino "a(s)" ou aos pronomes demonstrativos "a(s)", "aquele(s)", "aquela(s)", "aquilo". Esse tipo de junção diz respeito não só à prosódia, mas à morfossintaxe. Além de envolver diferentes classes, exige que se observe a estrutura sintática no que diz respeito ao mecanismo da regência. Certos verbos e nomes exigem complementos introduzidos pela preposição "a". A indicação da crase demonstra que o usuário da língua tem consciência desse fato.
Numa frase como: "Refiro-me à moça que chegou ontem", a presença do artigo é inquestionável uma vez que a palavra "moça" está determinada (não é de qualquer moça que se fala). A ausência do acento grave indicaria a falta da preposição pedida pelo verbo "referir(-se)" Isso tornaria válido que, no masculino, se escrevesse: "Refiro-me o rapaz que veio aqui ontem". Por aí se vê que, para "abolir a crase", seria preciso ignorar a transitividade verbal e nominal. Quem diz "Fique atento a rua" deve dizer, por analogia, "Fique atento o rio".
A supressão do acento indicativo de crase pode criar ambiguidade de sentido. Como, sem ele, entender expressões do tipo "Vendo a vista"? A pessoa vende um produto sob pagamento imediato ou quer negociar os próprios olhos? Linguisticamente, não se descarta a segunda hipótese, por mais absurda.
Dúvida semelhante suscitam passagens como: "Bateu a máquina o ofício", "Ninguém vence a força", "Feriu o menino a navalha", "Agrediu o mendigo a luz do dia". Elas só adquirem um sentido preciso com a indicação da crase. Isso mostra que o conectivo a, em razão da variedade de posições dos termos oracionais em nossa língua, é instrumento de clarificação do sentido. A necessidade de clareza leva a que muitas vezes se anteponha esse conectivo a termos que sintaticamente o dispensam - como o objeto direto. Em "Segue à noite o dia", a preposição é fundamental para que se saiba qual o sujeito da frase.
Confira nestas páginas dicas e conselhos para empregar o acento mais complicado do idioma.
Reconhecendo que a crase parecia mesmo ter-se transformado num "grave problema ortográfico e existencial", o poeta Ferreira Gullar cunhou há décadas aforismos sobre o assunto. O mais popular deles é o de que "a crase não foi feita para humilhar ninguém". Gullar a defendia, criticando escritores, jornalistas e escrevinhadores que "tremiam diante de certos aa", mas suas palavras acabaram servindo de argumento aos que a detratavam. Entendeu-se que ele pretendia livrar as pessoas da dolorosa obrigação de crasear, e não aconselhá-las a estudar português. Uma das justificativas de Hermann para seu projeto foi a de que a crase "só serve para humilhar". Dava a entender que a extinção do "acento" (sic) pouparia os brasileiros do vexame de não saber usá-lo.
Fusão
O fato é que, entre humilhados e ofendidos, não se aboliu a crase. Se as pessoas hoje procuram o divã, é por outras razões. Tampouco a cruzada contra ela fez efeito; ao contrário: quando se tentou extingui-la, muitos mostraram que a falta do acento grave sobre o a em certos contextos complica mais do que simplifica. Representa ameaça à clareza e sugere desconhecimento de peculiaridades estruturais da língua.
O que é a crase, afinal? A primeira confusão que se faz é considerá-la um mero sinal gráfico. A crase não é acento, mas um fenômeno fonético; define-se como a fusão de vogais iguais. Eis o motivo pelo qual ninguém craseia um a; indica, por meio do acento grave, que nesse a existe uma duplicação de fonemas.
A crase pode ocorrer no início da palavra ou entre palavras. O primeiro caso se inclui no que se chama de metaplasmo, uma mudança no som e na morfologia pela qual passaram muitos vocábulos da nossa língua. Há crase, por exemplo, nas formas "pôr" (poor), "ser" (seer), "pé" (pee), que em sua evolução do latim para o português perderam consoantes e adquiriram grupamentos vocálicos que depois se fundiram.
A crase entre palavras pode dizer respeito só à pronúncia ou ser marcada na escrita. Um exemplo do primeiro caso: "Luciana é umaamigaatenta". Quando se pronuncia essa frase, o a de "uma" se junta ao a inicial de "amiga"; o mesmo ocorre entre o a dessa última palavra e o que inicia "atenta". Em versificação, esse tipo de crase constitui um caso de sinalefa, que é um meio de transformar duas sílabas em uma e manter a unidade métrica do poema. Exemplo de sinalefa está neste verso de Olavo Bilac: "Tinhas aalma de sonhos povoada"; o artigo a e o fonema inicial de "alma" se realizam numa mesma emissão de voz.
A crase marcada na escrita ocorre quando a preposição a se junta ao artigo definido feminino "a(s)" ou aos pronomes demonstrativos "a(s)", "aquele(s)", "aquela(s)", "aquilo". Esse tipo de junção diz respeito não só à prosódia, mas à morfossintaxe. Além de envolver diferentes classes, exige que se observe a estrutura sintática no que diz respeito ao mecanismo da regência. Certos verbos e nomes exigem complementos introduzidos pela preposição "a". A indicação da crase demonstra que o usuário da língua tem consciência desse fato.
Numa frase como: "Refiro-me à moça que chegou ontem", a presença do artigo é inquestionável uma vez que a palavra "moça" está determinada (não é de qualquer moça que se fala). A ausência do acento grave indicaria a falta da preposição pedida pelo verbo "referir(-se)" Isso tornaria válido que, no masculino, se escrevesse: "Refiro-me o rapaz que veio aqui ontem". Por aí se vê que, para "abolir a crase", seria preciso ignorar a transitividade verbal e nominal. Quem diz "Fique atento a rua" deve dizer, por analogia, "Fique atento o rio".
A supressão do acento indicativo de crase pode criar ambiguidade de sentido. Como, sem ele, entender expressões do tipo "Vendo a vista"? A pessoa vende um produto sob pagamento imediato ou quer negociar os próprios olhos? Linguisticamente, não se descarta a segunda hipótese, por mais absurda.
Dúvida semelhante suscitam passagens como: "Bateu a máquina o ofício", "Ninguém vence a força", "Feriu o menino a navalha", "Agrediu o mendigo a luz do dia". Elas só adquirem um sentido preciso com a indicação da crase. Isso mostra que o conectivo a, em razão da variedade de posições dos termos oracionais em nossa língua, é instrumento de clarificação do sentido. A necessidade de clareza leva a que muitas vezes se anteponha esse conectivo a termos que sintaticamente o dispensam - como o objeto direto. Em "Segue à noite o dia", a preposição é fundamental para que se saiba qual o sujeito da frase.
Confira nestas páginas dicas e conselhos para empregar o acento mais complicado do idioma.
A fórmula infalível | ||
Um simples procedimento pode determinar o uso ou não do acento indicativo de crase | ||
Uma dica para saber se o a recebe acento indicativo de crase é substituir a palavra feminina que vem depois dele por outra masculina. Caso no masculino ocorra aglutinação (ao, aos = a+o, a+os), no feminino há crase (à, às = a+a, a+as). Compare: Petra vai ao distrito amanhã. (a+o) - Petra vai à cidade amanhã. (a+a) Meu estojo é semelhante ao seu. (a+o) - Minha bolsa é semelhante à sua. (a+a) "Aquele" e "aquilo" não são formas femininas mas a crase pode ocorrer antes deles, pois começam por a : "Deu àquele amigo o melhor que tinha", "Não faça mais referência àquilo". |
MAIS QUE A PRESENÇA DA PREPOSIÇÃO "De moda a eletrônicos": o a não recebe acento por ser só preposição. E permaneceria sem mesmo se viesse antes de termo feminino, para se correlacionar com "de" |
Com ou sem crase? | ||
As várias situações em que o uso da crase é (ou não) indicado | ||
1. O acento indicativo de CRASE OCORRE: | ||
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Atenção: em "Resolveu atender a nossas súplicas", o a é apenas preposição. Constituiria um erro acentuá-lo. Errado também seria escrever "Resolveu atender as nossas súplicas", pois nesse caso haveria menção apenas ao artigo. | ||
2. NÃO HÁ CRASE antes de: | ||
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Atenção: a regra acima explica a inexistência do acento grave sobre o "a(s)" em frases do tipo "Ficarei lá até a 1h.", "Está comigo desde as 19h", "O início do espetáculo está marcado para as 21h". | ||
3. Quando se PODE OU NÃO indicar a crase: | ||
A indicação da crase é facultativa antes de pronomes possessivos e de nomes próprios do gênero feminino, pois eles podem vir ou não precedidos de artigo. "A professora fez um elogio a(à) minha redação", "Dei a(à) Laura o melhor de mim". | ||
Outros casos
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PALAVRAS REPETIDAS "Dia a dia": a crase não ocorre entre palavras que se repetem, o que é seguido pelo anúncio publicitário |
Estratégias de estudo | |
A própria definição de crase (fusão de preposição com artigo) aponta as melhores estratégias para o seu estudo. Uma delas é procurar reconhecer a regência dos verbos e nomes que transitam para seus complementos por meio da preposição a. Alguns desses verbos são "dar", "assistir", "referir-se", "ascender", "fugir", "aludir". Entre os nomes, podem-se citar "avesso", "infenso", "hostil", "alergia", "movido", etc. Distinguir a presença do artigo é a outra condição para que se assinale corretamente a crase. Nem sempre uma palavra do gênero feminino está usada com sentido definido. Isso depende, muitas vezes, da intenção do falante. Eis alguns exemplos do uso genérico dessas palavras: avesso a badalação, infenso a crítica, hostil a balbúrdia, alergia a laranja, movido a adrenalina. Nesses casos os monossílabos grifados são preposições e, obviamente, não podem receber o acento grave. |
Exercícios |
1. Reescreva as frases abaixo, substituindo os termos grifados pelos que estão entre parênteses: |
Cumprir as ordens dos pais é sinal de maturidade do filho. (obedecer) Ninguém mencionou as queixas dos alunos. (referiu-se) O presidente, no discurso, citou as últimas estatísticas. (aludiu) Pessoas cuidadosas preveem as más ocorrências. (antecipam-se) Se quer vencer, cultive as pessoas certas. (ligue-se) Hoje, está apto aos desafios mais difíceis. (provas) A observância aos ritos é condição de base das religiões. (regras) A vacina o deixou imune ao sarampo. (rubéola) |
2. Preencha as lacunas com a ou à: |
Depois de dias no mar, o barco voltou ( ) terra. Os parentes dos pescadores observavam, ( ) distância, a embarcação se aproximar da praia. Estavam há dias ( ) míngua de peixe, por isso não escondiam ( ) euforia ( ) medida que a embarcação se aproximava. |
3. Indique nos parênteses a quantidade de a (as) que recebe o acento indicativo de crase: |
( ) Maurício cultivou a horta de ponta a ponta. ( ) A moça ficou a pensar sobre os seus problemas. ( ) A Justiça subtrai-se as pessoas que a querem merecer a força. ( ) Refiro-me a essa bolsa, não a que comprei ontem. |
A REGÊNCIA FAZ A DIFERENÇA No trecho "Faltou às últimas reuniões..." deste anúncio publicitário ligado a uma iniciativa educacional, a indicação do sinal da crase justifica-se pela regência do verbo "faltar", que pede complemento preposicionado, e pela presença do artigo. Sem a preposição, o enunciado ficaria ambíguo e sugeriria erro de concordância ("As últimas reuniões faltou..."). |
"Quilômetros à frente": neste caso, "à frente" é locução adverbial com palavra feminina. Em casos assim, é aconselhável sempre indicar a crase |
Indicações de leitura | |
Um dos livros mais completos sobre o assunto é Decifrando a Crase, de Celso Pedro Luft (Globo, 2005). A crase não se evidencia pelo aspecto fonético, pois ao contrário do que ocorre em Portugal nós não distinguimos pela pronúncia os fonemas a e à. Quais os meios, então, de saber quando que ela existe? O professor Luft responde a isso num livro prático e inteligente, que procura nos prevenir do que ele chama de "crasioneurose". Lendo-o, percebemos que com um pouco de conhecimento da sintaxe e da morfologia do português evitamos que esse árido tema nos humilhe. Outra obra útil sobre o assunto é Para Escrever Melhor, de Adriano da Gama Kury (Nova Fronteira). De forma bem-humorada, o autor mostra em que consiste a crase e apresenta os principais casos em que ela ocorre. Por meio de um quadro-resumo expõe os casos em que não se deve usar o acento grave, justificando-os com exemplos acessíveis. |
Falhas na indicação da crase | ||
Nos exemplos abaixo, retirados de redações de vestibulandos, ocorrem falhas na indicação da crase por excesso ou omissão. Entenda as razões | ||
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VIANA, Chico. Cuidado com a crase. Revista Língua Portuguesa. Disponível em: http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=12408. Acesso em: 02/03/2012.
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