8 de set. de 2011

O ataque da norma culta

Fatos do idioma que a gramática normativa poderia repensar antes de lançar sua ira contra as transgressões

Há pontos da gramática normativa do português brasileiro que exigem revisão urgente, a ser feita com metodologia científica. Ou seja, com base na teoria linguística, no efetivo uso culto atual e nas soluções adotadas por outras línguas europeias, quase sempre mais simples do que as nossas.


O espanhol, o francês, o italiano e o inglês simplificaram bastante suas gramáticas normativas no último século, abonando construções também usuais em português, embora estigmatizadas por nossos gramáticos.


Antes de qualquer revisão, porém, é preciso ter claro para que serve a gramática normativa. Dentre suas funções, as mais importantes são descrever o funcionamento e sobretudo normatizar o uso de um idioma em seu registro formal. Acontece que uma língua, seja em que registro for, é regida por dois tipos de injunção: as do sistema, de natureza funcional-estrutural, e as do uso, de caráter conjuntural e estilístico.


Donos da norma

Injunções estruturais são como leis jurídicas, que definem o que é obrigatório ou proibido, legal ou ilegal, e preveem sanções à sua transgressão. Já injunções conjunturais equivalem a normas morais, que estabelecem condutas desejáveis ou reprováveis, cuja desobediência acarreta só repúdio. Por exemplo, a anteposição do artigo ao substantivo é injunção estrutural do português, uma "lei" cujo desrespeito leva à incompreensão e à destruição do sistema. (Quem disser *"menino o" em lugar de "o menino" não fala português.) Já a colocação do pronome pessoal oblíquo ("amo-te" x "te amo") é questão de norma, um uso "recomendado". Mas recomendado por quem?


A quem deve caber o poder de disciplinar o uso da língua? E que qualificações esse alguém deve ter? Afinal, a norma prescrita pelas atuais gramáticas baseia-se em autores "clássicos" (muitos dos quais transgressores em sua época) e numa certa "lógica" criada pelos próprios gramáticos, sem embasamento científico e, por vezes, fortemente idiossincrática. O exemplo mais emblemático - e patético - de conduta logicizante, que procura adequar a realidade à língua e não o contrário, foi o gramático francês Vaugelas (1585-1650).


Referências

A estrutura da língua não pode ser alterada por decreto - nem mesmo dos gramáticos. Só a evolução, ao longo dos séculos, é capaz de mudá-la. Portanto, só resta descrevê-la cientificamente. Quanto a aspectos de uso e estilo, o que temos são juízos de valor e não de verdade. Há situações em que a elegância da expressão é desejável, mas determinar o que é elegante ou não é tarefa para lá de subjetiva. E é questionável que autores "clássicos" (quem estabelece o cânone literário, com que critérios?) sejam mais elegantes do que os modernos, que o português lusitano seja mais elegante que o brasileiro, e assim por diante.


Aldo Bizzocchi é doutor em linguística pela USP e autor de Léxico e Ideologia na Europa Ocidental (Annablume)
www.aldobizzocchi.com.br

Questões que merecem revisão
1 Nomenclatura
É preciso uma revisão da Nomenclatura Gramatical Brasileira para adequá-la à terminologia científica corrente, que seja fruto das modernas teorias linguísticas e procure dar conta da realidade da língua tal qual inferida pelas pesquisas.
2 Uso de corpus e métodos empíricos
Incorporação à norma dos usos correntes em textos cultos, com base em levantamentos exaustivos realizados pela comunidade de pesquisadores, como o Projeto Nurc (Norma Urbana Culta), por exemplo, e mesmo a abonação de formas populares que se mostrem práticas e racionais.
3 Regularização de paradigmas
Acréscimo às formas irregulares inúteis, como "apiado, apiadas" (do verbo "apiedar"), "mobílio, mobílias" (de "mobiliar") e "medeio, medeias" (de "mediar") das regulares: "apiedo", "mobilio", "medio", etc. Além disso, regularização de verbos defectivos como "adequar", que, embora contra a vontade de boa parte dos gramáticos, já se conjuga, na prática, em todas as pessoas e tempos.
4 O pronome pessoal "você"
Reconhecimento de que "você" e "vocês" são pronomes pessoais e não de tratamento. (Se a gramática normativa serve para normatizar a língua padrão, então formas regionais, coloquiais e arcaicas como "tu" e "vós", não usuais no registro formal, devem ser objeto de um capítulo à parte do ensino de língua, tal como acontece em inglês com os pronomes pessoais thou e ye, restritos à literatura clássica.)
5 Colocação pronominal
Racionalização da colocação dos pronomes pessoais oblíquos; para isso, deveríamos nos espelhar tanto no uso efetivo dos falantes quanto nas regras das demais línguas, bem mais simples que as nossas. Um dos efeitos disso seria o reconhecimento definitivo do caráter arcaico e pedante da mesóclise.
Apenas como exemplo, o espanhol e o italiano dos séculos 16 e 17 usavam ênclises como ainda hoje são prescritas em português (esp. dábasemelo, it. rivolgerommi), mas há muito as aboliram: hoje o que temos é "se me lo daba" e "mi rivolgerò". Em português, a solução mais prática, a meu ver, seria a colocação livre.
6 Simplificação dos numerais
Simplificação da numeração ordinal, fracionária e distributiva: paralelamente a "bismilésimo octingentésimo nonagésimo quarto", forma importada do latim, teríamos "dois mil oitocentos e noventa e quarto" (isto é, 2.894º), como fazem as outras línguas. Aliás, já se diz popularmente "trinta e quatro DP" em vez de "trigésima quarta DP" por causa da grande complexidade dos numerais ordinais do português.
7 Aumentativos e diminutivos
Simplificação das regras de formação de aumentativos e diminutivos: ao lado de "homenzarrão", "copázio" e "fogaréu", teríamos formas regulares como "homão", "homenzão", "copão" e "foguinho".
8 Fim da estigmatização de certas construções
Formas correntes em outros idiomas e também em Portugal são injustamente estigmatizadas no Brasil, como "a nível de", "mais grande" e "mais pequeno". A construção "a nível de", que nossos gramáticos condenam por pura idiossincrasia, é norma em português lusitano, espanhol, francês, italiano e inglês. Por sinal, os lusitanos preferem sempre "a" a "em" (sentar-se à mesa, chegar a casa, sair à janela), o que justifica "entrega a domicílio", por exemplo.
9 Formação de superlativos
Muitos dos nossos superlativos absolutos sintéticos são empréstimos do latim, o que gera irregularidades como "magro" x "magérrimo/macérrimo", "sagrado" x "sacratíssimo", "fácil" x "facílimo". Por que não aceitar também "magríssimo", "sagradíssimo", "facilíssimo"? Parece estranho? Pois é exatamente assim que o italiano forma seus superlativos.
10 Abonação de regências verbais contemporâneas
Atualmente, "assistir" e "obedecer", dentre outros, são usados, na melhor imprensa, como transitivos diretos, inclusive com direito a voz passiva: "foi o filme mais assistido", "a ordem não foi obedecida". A propósito, se "resistir" é transitivo indireto e não admite voz passiva (como supostamente também "assistir"), então como justificar "irresistível"? Afinal, "irresistível" é o que não pode ser resistido?!
11 "Vende-se" ou "vendem-se"?
A questão da concordância em construções passivas sintéticas já se tornou prosaica. Além de estudos avançados em sintaxe demonstrarem que, atualmente, não existem passivas sintéticas em português, alguns gramáticos já aceitam a construção "vende-se casas" paralelamente a "vendem-se casas".
12 Objeto direto preposicionado
Deve-se usar sempre a preposição "a" diante de pronomes oblíquos tônicos, mesmo quando o verbo é transitivo direto: "vi a ele, não a ela", "eu amo a você, não a ele". Entretanto, construções como "vi ele, não ela" e "eu amo você, não ele" são padrão em outros idiomas. (O espanhol é a única língua além do português a ter objeto direto preposicionado, mas com a diferença de que a preposição "a" é obrigatória diante de objeto direto animado.)
13 Orações adjetivas reduzidas de gerúndio
Muitos gramáticos rejeitam orações adjetivas reduzidas de gerúndio com verbos que não denotem ação. No lugar de "um livro contendo receitas", prescrevem "um livro que contém receitas". No entanto, em francês, italiano, inglês e alemão, ambas as construções são corretas, e a gerundial é a mais frequente, inclusive no registro formal.
14 Orações subordinadas substantivas regidas por preposição
Orações subordinadas substantivas objetivas indiretas ou completivas nominais introduzidas por "que" devem ser precedidas de preposição, exceto em uns poucos casos ("preciso que", "gosto que"). Só que, na prática, essa preposição vem sendo abolida mesmo pelos falantes cultos ("informá-lo que" é tão aceitável quanto "informá-lo de que"); em alguns casos, essa regra gera até hipercorreção: "eu acredito de que". Além disso, as demais línguas europeias prescindem dessa preposição. Compare: port. "estou certo de que", esp. estoy seguro que, fr. je suis sûr que, it. sono sicuro che, ing. I am sure that. Finalmente, dizemos "antes que", "depois que" e não *"antes de que", *"depois de que".

BIZZOCCHI, Aldo. O ataque da norma culta. Revista Língua. Disponível em: http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=12380. Acesso em: 08/09/2011.

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